Total de visualizações de página

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Sobre dons, ou a falácia da habilidade como capacidade


Nos últimos dias li duas opiniões sobre talentos e dons que me despertaram atenção. Uma em um blog de uma funcionária da Record e outra no Facebook postada por um conhecido. Em ambas há a afirmação de que a crença em capacidades inatas, em “habilidades já prontas de fábrica” quando se falar em seres humanos é um erro, pois seria algo mágico ou milagroso. Tudo o que fazemos bem seria fruto de esforço, de dedicação e interesse, prática e estudo e não de um dom inexplicável e místico dado a algumas pessoas por um ser superior...

As coisas colocadas nesses termos parecem estar bem, apelam para senso comum e agradam as pessoas não dispostas a aceitarem o sobrenatural e tb as que acreditam no individualismo. É um apanhado de idéias costuradas entre si de forma a aparentarem coerência e confirmação, mas o caso é outro. É necessário analisar as partes para que possamos destacar erros e ainda mais, observar que há outras partes envolvidas que não são levadas em conta.

Existe o inato e ele não é criação divina, fruto de milagre ou algo produzido por magia. Ele está presente no comportamento dos seres vivos, nós incluídos. A palavra dom inspira essa confusão. Realmente ela nos dá a idéia de que há algo sobrenatural, divino, superior em pessoas que se destacam em algumas áreas do conhecimento ou das práticas artísticas, esportivas e outras, mas não há tal coisa. No entanto, há sim habilidades inatas envolvidas em todas as nossas formas de agir e pensar e elas têm origem evolutiva e não sobrenatural. A evolução por seleção natural nada tem de mágica, e é ela que nos fez indivíduos diferentes. 

A diversidade biológica é algo ótimo para a preservação da espécie. Com diferentes habilidades podemos construir grupos mais diversificados, com grande capacidade de sobrevivência e reprodução. Se em outros animais habilidade inatas não são consideradas de origem sobrenatural, pq seriam entre seres humanos? Por preconceito, gostamos de nos ver como algo acima da natureza, como seres mais evoluídos que os outros animais. Erra quem duvida da evolução por seleção natural, erra tb quem a reduz à evolução dos outros seres vivos e não a aplica ao ser humano e ao seu modo de agir e pensar. 

Ao reconhecer que existem sim habilidades inatas fruto de seleção natural, novos problemas se mostram para serem enfrentados. Para os conservadores parece bom, pois se há desigualdade isso se deve, segundo eles a diferenças de capacidade. A falácia aqui é a confusão dos termos habilidade com capacidade. Como destaquei acima diferentes habilidades podem ser usadas para maior diversificação da capacidade do grupo em sobreviver. Então não há justificativa para a crença conservadora. Diferenças são boas se usadas para enfrentar problemas diversificados e não para classificar pessoas em superiores e inferiores. Habilidades são em parte inatas, mas obviamente podem ser desenvolvidas, mas não podemos confundi-las com as capacidades. Capacidade é algo determinado pela sociedade, pela cultura. Nas sociedades divididas em classes, as capacidades são determinadas pela ideologia da classe dominante.

Afirmar que tudo é fruto do esforço pessoal equivale a dizer que quem não tem o que precisa para viver, quem não tem toda a abundância de coisas supérfluas criadas pela sociedade industrial é um preguiçoso, alguém que não se esforçou o suficiente. Um fracassado. A culpa recai no individuo, e novamente temos o pensamento conservador em ação. 

O que está no cerne da questão é o inato no comportamento humano, algo cuja existência é negada por motivos diferentes. Em geral tendemos a ver o ser humano como totalmente moldável ao ambiente e capaz de aprender e adquirir toda e qualquer habilidade a que se dispuser a ter. Esse pensamento é visto como algo alvissareiro, pois sendo assim todos tem condições de melhorarem se aprimorarem, se darem bem na vida. Mas há uma faceta sombria nessa suposição. 

Os que não conseguiram sucesso, os que não se saíram bem, os “fracassados” são os que não se esforçaram, os preguiçosos, os incapazes. É uma crença cruel contra os bilhões de miseráveis do mundo, que morrem de fome, de doenças causadas por falta de condições sanitárias mínimas, doenças cujo tratamento é inacessível a quem não pode pagar... e além de tudo é uma crença falsa. Diferentes habilidades só se tornam diferentes capacidades quando selecionadas pela sociedade, ou melhor, pela classe dominante da sociedade em questão. Mas talvez isso seja mais bem visualizado em um ambiente que reproduz em escala reduzida e de forma ainda mais exacerbada a realidade social. Falamos da escola. 

Apenas habilidades ligadas diretamente ao calculo e o entendimento de textos informativos são vistas como “capacidade” nas escolas. Todas as demais inúmeras habilidades são vistas na melhor das hipóteses apenas como uma curiosidade, quando não são simplesmente ignoradas. A escola obedece às normas sociais que determinam o que deve ser valorizado. Obviamente os profissionais da educação tentam contestar essa afirmação argumentando que há inúmeras tentativas de se modificar esse fato. Mas aqui escrevo sobre o que acontece e não sobre boas intenções. Se há tantos tentando mudar e não conseguem estão no mínimo tentando do modo errado. 

Quando se identifica capacidade com habilidade está se incorrendo em um erro que é útil a ideologias políticas conservadoras. Quando a sociedade influenciada pela classe dominante seleciona o que lhe é útil e coloca como a única coisa digna de importância, se está cometendo um ato contra a diversidade, o que é péssimo para a evolução dessa própria sociedade e ainda oprime indivíduos que não se enquadram no perfil a ser preenchido. 

Todos os dias em todos os ambientes sociais estamos valorizando apenas algumas habilidades e menosprezando  inúmeras outras. As pessoas que nasceram com essas habilidades vistas como capacidade e principalmente as que tiveram a chance de desenvolve-las ganham status de portadoras de dons, o que é injusto e mesmo cruel com as demais que tb tem  suas habilidades mas que não são valorizadas.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Crenças sem fundamento e preconceito de classe.

No texto “A ciência e sua maneira de agir” publicado nesse mesmo blog escrevi sobre Maria, personagem pobre e de instrução mediana. Na ocasião ela procura ajuda médica para tratar uma grave doença. Sendo religiosa, no entanto, prefere acreditar em milagre no caso de cura ou ao menos de melhora e não na eficiência da medicina. Mas o resultado prático é o mesmo. 

Seu bom senso a ajuda a escolher alternativas válidas de tratamento e não se deter apenas em coisas de que gosta de crer mas são ineficazes e sem comprovação. É o comum entre as pessoas. Acreditam em deuses, em conspirações do universo, em energias misteriosas, em forças vitais, milagres, karma, cristais, memória curativa da água e em várias coisas do tipo, mas nada disso impediu o desenvolvimento da medicina e de todo o conhecimento que temos sobre a realidade em inúmeras outras áreas. A maior parte das pessoas tem esse senso prático realista em algum grau apesar das fantasias em que estão inseridas. 

Há, no entanto, uma visão preconceituosa sobre as pessoas como Maria. As crenças dela e dos membros de sua classe social são vistos como obtusas, irracionais, próprias de pessoas iletradas e sem instrução. Há o mito de que noções equivocadas e fantasiosas sobre a realidade sejam próprias de "pessoas com pouca inteligência". Mas crenças igualmente sem fundamento existem também entre as parcelas mais instruídas da sociedade. 

A diferença é que ao serem aceitas pelos de maior status social, os mitos passam a ser aprimorados, melhor elaborados e ganham maior capacidade de se disfarçarem de conhecimento real e de enganarem outras pessoas. São as crenças “chiques”, que usam de termos sofisticados e de justificativas extremamente convincentes sobre si. Apropriam-se de conceitos reais e os usam de forma desonesta, fora do contexto, falsificando-os. Convencem mesmo pessoas altamente instruídas, que se acham imunes a enganações. Os termos crendice e superstição, e também auto ajuda e práticas alternativas talvez nos ajudem a observar a distinção entre crenças irreais próprias de diferentes classes sociais.  

São chamadas de crendices e superstições as crenças dos mais pobres, são auto-ajuda e práticas alternativas as crenças das classes elevadas e de maior instrução. Muitas práticas da chamada medicina alternativa realizadas em clínicas caras para clientes que dispõem de recursos para pagar não tem qualquer fundamento, mas não são consideradas crendice. Crendice é apenas a cura pela invocação do sobrenatural feita pelo pajé, babalorixá ou por pastores evangélicos. 

Pensamento positivo fazendo o universo conspirar a seu favor é algo tão irreal quanto as práticas mágicas feitas populações de coletores caçadores do passado e do presente. Mas as crendices chiques das classes superiores não se detêm nos termos autoajuda e práticas alternativas. O uso do termo física quântica já há algumas décadas é recorrente nesse meio fantasioso sofisticado e serve para justificar afirmações as mais absurdas, que nada tem em comum com a mecânica quântica da física real. São crenças místicas se transvestindo de conhecimento real.

Para constatarmos que pessoas instruídas e com bom nível inteligência não são imunes a crenças não fundamentadas podemos ler a publicidade de revistas de entretenimento e de informação voltadas ao público classe média e elitista. São oferecidos inúmeros produtos para tratamentos estéticos e de saúde sem nenhuma comprovação de eficiência ou fundamentação de funcionamento. No entanto são adquiridos pelos consumidores ávidos por acreditar que vão emagrecer tomando chá, que ficarão dez anos mais jovens com o novo creme para a pele, que ficarão menos estressados tomando o complexo vitamínico anunciado ou que o suplemento alimentar irá lhe tornar forte como o ator de filmes de ação... Felizmente a regulamentação sobre saúde não permite maiores engôdos, mas mesmo assim remédios a base de nada são anunciados no tratamento de doenças que se curam sozinhas...

Steve Jobs e Bob Marley, cujos níveis de inteligência foram obviamente inegáveis em suas áreas, nem por isso estiveram imunes a crenças fantasiosas que os impediram de procurar tratamento real para a doença que os vitimou. Crer que atitudes moldadas por mitos e suposições equivocadas  são "próprias dos iletrados" acaba por facilitar a propagação das crenças perfumadas, bem vestidas mas igualmente falsas das classes mais elevadas. 

O conhecimento existe e não é exclusivo de uma parcela da sociedade. Apesar de ser mais facilmente produzido quando se tem recursos para isso sua aquisição não é tão dispendiosa em um país como o nosso desde que se esteja disposto a procurar. A sorte de se de contar com educadores que saibam distinguir entre fantasia e realidade é importante, o que aumenta enormemente a responsabilidade de pais, profs e todos os indivíduos responsáveis pela formação da criança e do adolescente.