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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Crenças sem fundamento e preconceito de classe.

No texto “A ciência e sua maneira de agir” publicado nesse mesmo blog escrevi sobre Maria, personagem pobre e de instrução mediana. Na ocasião ela procura ajuda médica para tratar uma grave doença. Sendo religiosa, no entanto, prefere acreditar em milagre no caso de cura ou ao menos de melhora e não na eficiência da medicina. Mas o resultado prático é o mesmo. 

Seu bom senso a ajuda a escolher alternativas válidas de tratamento e não se deter apenas em coisas de que gosta de crer mas são ineficazes e sem comprovação. É o comum entre as pessoas. Acreditam em deuses, em conspirações do universo, em energias misteriosas, em forças vitais, milagres, karma, cristais, memória curativa da água e em várias coisas do tipo, mas nada disso impediu o desenvolvimento da medicina e de todo o conhecimento que temos sobre a realidade em inúmeras outras áreas. A maior parte das pessoas tem esse senso prático realista em algum grau apesar das fantasias em que estão inseridas. 

Há, no entanto, uma visão preconceituosa sobre as pessoas como Maria. As crenças dela e dos membros de sua classe social são vistos como obtusas, irracionais, próprias de pessoas iletradas e sem instrução. Há o mito de que noções equivocadas e fantasiosas sobre a realidade sejam próprias de "pessoas com pouca inteligência". Mas crenças igualmente sem fundamento existem também entre as parcelas mais instruídas da sociedade. 

A diferença é que ao serem aceitas pelos de maior status social, os mitos passam a ser aprimorados, melhor elaborados e ganham maior capacidade de se disfarçarem de conhecimento real e de enganarem outras pessoas. São as crenças “chiques”, que usam de termos sofisticados e de justificativas extremamente convincentes sobre si. Apropriam-se de conceitos reais e os usam de forma desonesta, fora do contexto, falsificando-os. Convencem mesmo pessoas altamente instruídas, que se acham imunes a enganações. Os termos crendice e superstição, e também auto ajuda e práticas alternativas talvez nos ajudem a observar a distinção entre crenças irreais próprias de diferentes classes sociais.  

São chamadas de crendices e superstições as crenças dos mais pobres, são auto-ajuda e práticas alternativas as crenças das classes elevadas e de maior instrução. Muitas práticas da chamada medicina alternativa realizadas em clínicas caras para clientes que dispõem de recursos para pagar não tem qualquer fundamento, mas não são consideradas crendice. Crendice é apenas a cura pela invocação do sobrenatural feita pelo pajé, babalorixá ou por pastores evangélicos. 

Pensamento positivo fazendo o universo conspirar a seu favor é algo tão irreal quanto as práticas mágicas feitas populações de coletores caçadores do passado e do presente. Mas as crendices chiques das classes superiores não se detêm nos termos autoajuda e práticas alternativas. O uso do termo física quântica já há algumas décadas é recorrente nesse meio fantasioso sofisticado e serve para justificar afirmações as mais absurdas, que nada tem em comum com a mecânica quântica da física real. São crenças místicas se transvestindo de conhecimento real.

Para constatarmos que pessoas instruídas e com bom nível inteligência não são imunes a crenças não fundamentadas podemos ler a publicidade de revistas de entretenimento e de informação voltadas ao público classe média e elitista. São oferecidos inúmeros produtos para tratamentos estéticos e de saúde sem nenhuma comprovação de eficiência ou fundamentação de funcionamento. No entanto são adquiridos pelos consumidores ávidos por acreditar que vão emagrecer tomando chá, que ficarão dez anos mais jovens com o novo creme para a pele, que ficarão menos estressados tomando o complexo vitamínico anunciado ou que o suplemento alimentar irá lhe tornar forte como o ator de filmes de ação... Felizmente a regulamentação sobre saúde não permite maiores engôdos, mas mesmo assim remédios a base de nada são anunciados no tratamento de doenças que se curam sozinhas...

Steve Jobs e Bob Marley, cujos níveis de inteligência foram obviamente inegáveis em suas áreas, nem por isso estiveram imunes a crenças fantasiosas que os impediram de procurar tratamento real para a doença que os vitimou. Crer que atitudes moldadas por mitos e suposições equivocadas  são "próprias dos iletrados" acaba por facilitar a propagação das crenças perfumadas, bem vestidas mas igualmente falsas das classes mais elevadas. 

O conhecimento existe e não é exclusivo de uma parcela da sociedade. Apesar de ser mais facilmente produzido quando se tem recursos para isso sua aquisição não é tão dispendiosa em um país como o nosso desde que se esteja disposto a procurar. A sorte de se de contar com educadores que saibam distinguir entre fantasia e realidade é importante, o que aumenta enormemente a responsabilidade de pais, profs e todos os indivíduos responsáveis pela formação da criança e do adolescente.  





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