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sexta-feira, 6 de junho de 2014

Da inexistência de tipos de conhecimento.

O conhecimento, de acordo com a opinião de várias pessoas, incluindo aí pensadores famosos e filósofos cultuados, se dividiria entre vários tipos. Haveria o conhecimento filosófico, o cientifico, o religioso, o mítico, o artístico, e inúmeras “subdivisões” dentro destes. Mas há algo curioso nessa classificação. A coincidência das alegadas diferentes formas de conhecimento com as diferentes formas de se produzi-lo. Aqui vou defender algo diferente. O conhecimento não pode ser retalhado dessa maneira. 

Essa prática visa unicamente defender métodos de se produzir conhecimento, em especial os menos eficazes, de uma análise mais acurada. É do interesse de alguns que o conhecimento seja visto como impossível de se obter, e de outros que o conhecimento seja diminuído à subjetividade, que seja apenas uma forma de conceber o mundo e não a forma concreta de se apreender a realidade. 

Existe obviamente conhecimento subjetivo, que "depende do ponto de vista do individuo e dos padrões culturais da sociedade", no entanto existe conhecimento objetivo, que nada tem de relativo ao modo de pensar de quem quer que seja. Conhecimento subjetivo se limita quase exclusivamente aos estudos sobre a sociedade humana. Mas como a nossa espécie é muito arrogante acreditamos que seja abrangente a toda a realidade. E isso é um erro. 

A realidade não depende de nós, o universo tem sua forma e conteúdo, seus fenômenos e processos, sua existência de forma independente do que pensamos dele bilhões de anos antes de nossa existência. O conhecimento nesse sentido universal é algo objetivo. E é algo possível de ser construído. Se não fosse, em que teríamos nos baseado para transformar tanto o mundo em que vivemos? Em desejo, vontade, sem saber como fazer?

Quando ouvimos ou lemos que algo é afirmado devido ao conhecimento religioso, em geral fica subentendido que a filosofia não religiosa e a ciência em nada podem opinar, pois é algo fora de seu escopo. Seria algo sagrado, “só comprovável pela fé”. 

Das formas de se construir conhecimento, é talvez a religião a mais conservadora e menos propensa a rever seus conceitos. Religião é um conjunto de crenças estruturado para defender uma formação social, invariavelmente dividida em classes sociais com dominância de uma sobre as demais. É, portanto, exclusiva de sociedades desenvolvidas a ponto de manterem esse tipo de estrutura complexa. Surgiu juntamente com as sociedades antigas tais como o Egito, a Mesopotâmia, a China, a Índia, Astecas e Incas entre outras. Antes dessa estruturação da religião, o que havia eram os mitos.

A vida cotidiana, as inovações no domínio sobre a natureza, todos os aspectos da vida social... Antes da escrita o conhecimento era passado de geração a geração por via oral e por meio de expressões artísticas e técnicas, tais como pinturas, danças, esculturas, o modo de confeccionar as roupas e indumentária, armas e ferramentas, técnicas de caça e de manejo da terra... Nas narrativas orais os mitos expressavam as realizações sociais, como a invenção da agricultura e a conquista do fogo. Elas eram quase sempre atribuídas a um indivíduo sobre-humano, tal como no mito da origem da mandioca entre os tupis e o presente do fogo aos humanos dado por um titã, entre os gregos. São formas de se manter o conhecimento de forma recriada, nesse sentido o mito se aproxima bastante da arte.

Arte não é uma forma de conhecimento em si, e sim a reconstrução criativa da realidade.

Sem uma classe social economicamente dominante, o mito foi uma forma de se manter a união do grupo através de costumes e práticas comuns auto justificadas. Pensava-se “sempre fizemos assim (o plantio, a caça, a confecção de instrumentos, o culto aos antepassados e fenômenos da natureza), sempre vivemos seguindo as crenças de nossos ancestrais e é por isso que somos um único povo, unido pelas nossas tradições, nossos costumes”.

Os mitos primitivos são importantes para que possamos entende o modo de agir e pensar, a formação social e todas as tradições culturais dos povos que os criaram, mas não podem ser igualados ao conhecimento agora acumulado e disponível sobre a natureza.

Mitos de vários povos são tidos pelos relativistas culturais mais exaltados como “tão verdadeiros” quanto o conhecimento objetivo, obtido por meios atuais. Isso equivale a dizer que os astros como o Sol e a Lua estão pouco acima da altura das árvores e que isso é tão verdadeiro quanto acreditar que estão a milhares ou milhões de quilômetros de nosso planeta. Por mais que esperneiem os pós-modernistas, lanças e flechas de culturas antigas não puderam alcançar a lua, mas naves construídas pela sociedade atual puderam, e seguiram além...

As constelações não são representações divinas de seres e acontecimentos ocorridos na Terra e sim conjunto de estrelas que aparentemente formam figuras. A mandioca não se originou do corpo enterrado de um ancestral do povo Tupi. O domínio do fogo foi uma importante conquista humana e não um presente de um Titã que o roubou dos deuses e as estações do ano não se originaram devido às mudanças de humores da deusa grega da agricultura... 

Mitos são eles mesmos objeto de estudo moderno para que saibamos sobre o passado, não devendo, no entanto ser vistos como conhecimento objetivo. São representações sobre como os nossos antepassados pensavam e como viam a realidade. E mais uma ressalva, os mitos ainda existem e continuam a ser criados, pois apesar da existência de meios mais realistas de se obter conhecimento, esses meios não estão disponíveis ou não são interessantes a todos. 

Mitos comuns a varias sociedades podem ser reelaborados e escritos de forma a originar interessantíssimas obras de ficção (tal como O Senhor dos anéis e Star Wars), mas nesse caso obviamente não estamos falando de construção de conhecimento propriamente dito e sim de "recriação artística", ou seja, o uso de criativo de conhecimento para entreter, encantar e mesmo questionar a realidade social.

Em nossa sociedade, onde o conhecimento se encontra mais acumulado e reelaborado do que no passado, as tentativas de se colocar o mito no mesmo patamar da ciência talvez seja uma forma de se definir o que seja “misticismo”, mas com algumas características a se considerar. Os mitos de povos antigos eram sinceros, eram a única forma de se entender a natureza e a realidade social. Já o misticismo moderno é enganação intencional ou não. 

As práticas mágicas, sobrenaturais, pseudocientíficas e afins do misticismo destoam dos mitos antigos pelo contexto histórico e o desenvolvimento científico alcançado atualmente. Acreditar em magia quando não se dispõe de tecnologia faz sentido, mas é absurdo acreditar em bola de cristal e telepatia quando se usa um computador e a web para se comunicar, e não supostos poderes mágicos ou capacidades paranormais...

A religião não raramente serve para manter a organização social estável, justificando-a como vontade divina, evitando mudanças e perturbações à ordem. Enquanto o mito é próprio de sociedades sem classes sociais estruturadas sobre diferenças econômicas, a religião se origina dessa diferenciação social e se torna fundamental para que essas diferenças se perpetuem. 

A religião dominante é sempre a da classe dominante. Mesmo quando mudanças profundas ocorrem, tal quando da substituição da formação social do Império Romano pelos “reinos bárbaros” na Europa, ou o fim do politeísmo na Arábia com sua substituição pelo islã, a religião se torna o “cimento ideológico” que justifica a nova realidade socioeconômica.

Em um nível mais profundo, os pensamentos míticos e religiosos têm raízes biológicas, são produtos da seleção natural que moldou os órgãos de nosso sistema nervoso, tal qual fez com todos os outros. Eles justificam em um nível racional a pratica de viver em grupos, coisas que diversos outros animais fazem sem precisar de justificativa racional alguma, pois não dispõem de neocórtex para terem uma consciência tão desenvolvida quanto à de nossa espécie.

Enquanto criadores de conhecimento objetivo, religião e mito não são muito eficazes. Então como nossos antepassados de milhares de anos no passado puderam dominar o fogo, produzir roupas que os abrigavam do frio, a invenção da agricultura, as técnicas de caça, a construção de complexas estruturas urbanas e tantas outras coisas que possibilitaram sua multiplicação e expansão por todo o planeta? 

A resposta é que eles não tinham apenas o mito e a religião. Havia a observação da natureza, a constatação realista de que a cada ano o rio próximo a aldeia se enchia e deixava o solo fértil para plantação. Houve a observação de que os animais perigosos fugiam do fogo e que ele poderia ser mantido se nunca fosse deixado sem madeira ou outros materiais combustíveis. Fizeram experimentos para descobrir que inúmeras plantas comestíveis poderiam ser reproduzidas ao se enterrar as suas sementes ou partes do caule e que outras poderiam ser usadas como remédio em forma de infusões e ungüentos. 

Nesses casos e em inúmeros outros o mito e a religião propriamente ditos apenas criaram fantasias de deuses e antepassados sobre-humanos produzindo essas conquistas, como no mito de Prometeu, onde o titã rouba o fogo dos deuses e o entrega aos homens. Mas o conhecimento se deu por meio de observação, análise, comparação, comprovação, troca de experiência e outras características que são a base do que hoje é conhecido como “ciência moderna”. Ou seja, ciência não é algo recente criado pela “cultura ocidental”, e sim o conjunto de todos os meios realistas de se construir conhecimento produzidos por incontáveis gerações humanas no mundo todo ao longo da história.

O conhecimento, produzido cientificamente ou não, às vezes é visto sem a necessária ponderação do uso em beneficio de quem será feito. Todo conhecimento deve ser alvo de uma crítica acurada, para se determinar sua serventia, benefícios e perigos aos indivíduos e a sociedade. Mas como é a ciência o método mais eficiente para se conhecer a realidade, é ela quem mais recebe críticas de quem tem medo da evolução do conhecimento. É do exame da ciência e da filosofia não religiosa que se tenta proteger as demais formas de se produzir conhecimento. 

Religiosos e místicos tem verdadeiro horror em ver seus dogmas questionados e reagem exacerbadamente contra qualquer análise crítica, em especial as feitas pela ciência. Alguns ingenuamente ou cinicamente afirmam que suas crenças sem fundamento são “científicas”, mas não há qualquer evidência da existência de reencarnação, espíritos incorpóreos, sobrevivência da alma após a morte, mediunidade, telepatia, clarividência, água com memória criativa e outros fenômenos do tipo. Tentativas de se verificar essas coisas foram e ainda são feitas a exaustão, e nada foi nem é comprovado.

Conhecimento é algo verificável. Não há justificativa honesta em se afirmar que informações não comprováveis ou comprovadas seja conhecimento. São suposições, hipóteses, estudos não conclusivos e afins, ou em alguns casos fantasias pura e simplesmente.

Erram os que identificam a ciência como algo recente. Erra também quem a vê como herdeira apenas do pensamento filosófico da Grécia antiga, ou “do ocidente”. Em todas as culturas humanas o domínio do ambiente e o uso criativo de seus recursos é uma constante, e para isso foi necessário a experimentação para se conhecer e a comparação para se verificar, o que demonstra que essas são capacidades inatas a todos os seres humanos. 

Para construir as pirâmides e praticar agricultura em larga escala em um clima desértico em uma época em que os gregos ainda viviam em aldeias do neolítico, os egípcios não tiveram ajuda de deuses nem de alienígenas, foram eles mesmos que inventaram as técnicas tendo conquistado um excelente nível de conhecimento em engenharia. 

O pensamento racional floresceu na China de mais de 2.000 anos atrás, com grandes avanços no estudo de propriedades físicas da luz entre outros, como nos trabalhos de Mo-tzu mas foi reprimido brutalmente séculos depois com a unificação do país pelo imperador Qin Shi Huang Di... 

Tb os árabes fundamentaram muito do desenvolvimento da ciência. Essa realidade de fanatismo religioso é algo recente se analisarmos sua longa história de construção de conhecimento cientifico. Suas observações astronômicas são um caso notório, como nos trabalhos de Abu Ali al-Hasan. Até hoje inúmeras estrelas são conhecidas em todo o mundo pelo nome dado por estudiosos árabes. Tb na química sua contribuição é enorme, através da “alquimia” que representou a transição entre o pensamento mágico antigo para a moderna concepção realista sobre as propriedades químicas dos elementos.

Nossos antepassados ainda mais longínquos, caçadores e coletores pediam ajuda dos deuses da caça por meio de rituais mágicos como pintura em cavernas, oferendas, homenagens... Mas o que possibilitava a caçada era o seu grande conhecimento sobre rastros, sobre o comportamento e a época propícia do ano para caçar cada presa, a produção de armas e as técnicas empregadas... São as formas objetivas de se obter e construir conhecimento que possibilitam as reais conquistas de nossa espécie na atuação sobre a realidade.

Não há razão, portanto, para afirmações do tipo: “Vc só considera o conhecimento cientifico, não leva em conta o conhecimento filosófico, religioso e outros”. Conhecimento não se divide assim. A ciência nos acompanha desde os primórdios. A partir do século XVIII na Europa ela teve um enorme desenvolvimento, mas as formas objetivas de se construção de conhecimento são ancestrais. E nisso a filosofia pode ser vista como algo que oscila entre o mito/religião e a ciência.

Há as correntes filosóficas que podem ser entendidas como a elevação dos mitos a um nível mais avançado, mais complexo e sistematizado, pois não abandonam as suposições não comprovadas sobre a natureza. Essas são chamadas genericamente de idealismo filosófico, dão primazia ao imaginado e não ao comprovável, pois acreditam que é o pensamento, as idéias, a consciência humana ou de seres sobrenaturais (como o deus bíblico) que criam a realidade.

Há por outro lado a filosofia que se apega exatamente a busca pela comprovação do real e que não se distingue dos princípios da ciência. Não vê o ser humano como criador da realidade e sim um elemento que atua dentro dos limites dela. É o materialismo filosófico, termo que pode ser resumido como a forma de analise da realidade tal como ela é sem, acréscimo de coisas que lhe são estranhas.

Apesar da óbvia ligação da filosofia idealista com a religião, ela se encontra na base até mesmo de um tipo de pensamento tido como tão moderno que se intitula “pós-modernista”. É a crença irracional de que não há realidade objetiva, tudo não passa de formas de entendimento sobre o mundo ou até mesmo da consciência criando a realidade... Em níveis mais atenuados até parcelas dos movimentos progressistas aceitam essa influência e se voltam contra o pensamento critico racional. Como, por exemplo, crer que somos seres “a parte” da natureza, cuja consciência, os modos de agir e pensar, não tem nenhuma base biológica, sendo originados... por magia talvez?

Quando se escreve que algo é natural no comportamento humano não se está dizendo necessariamente que seja imutável, não se deve considerar a biologia como idêntica ao pensamento conservador, mas tb os progressistas não podem continuar a desconsiderar a realidade de nossa herança genética, sob pena de continuarem a se perder em contradições insuperáveis como tem sido comum nas experiências de transformação social, em especial que almejavam a superação plena da atual sociedade capitalista. É necessário parar de trocar fatos por vontade de acreditar.

É papel da filosofia também a reflexão crítica dos meios usados para se obter conhecimento e os já obtidos. Como não é de se estranhar, a filosofia idealista que se prende a religião e ao mito tem uma visão menos amigável da ciência, a vê como uma ameaça a si, e tenta de todas as formas dar continuidade a essa visão equivocada sobre a existência de “diferentes tipos de conhecimento”. Tenta com isso construir um muro contra críticas feitas a sua validade.

A filosofia que faz jus ao nome “amor ao conhecimento” deve, no entanto observar a comprovação continua dos métodos objetivos e criticar exatamente as falhas no seu uso. E principalmente fazer observações éticas sobre os rumos de para onde está sendo dirigida a enorme produção de conhecimento no mundo moderno, a quem está servindo e no interesse de quem são realizadas as escolhas sobre o que pesquisar e o que produzir. Bill Gates, que não é filósofo filosofou muito bem com uma simples constatação feita recentemente: “Capitalismo significa pesquisar mais a calvície que malária”...

Uma critica válida que o pensamento progressista faz se dirige ao uso da ciência para aumentar lucros dos mais ricos e não a melhoria das condições de vida dos mais pobres. Mas atenção, não é uma critica aos meios objetivos de se construir conhecimento, não é uma critica a ciência em si, e sim ao seu uso em beneficio de apenas uma parte da sociedade. Necessária essa consideração, pois há confusão de conceitos em alguns círculos que se consideram progressistas, mas reproduzem o irracionalismo. 

Criticam a ciência não apenas pelo seu mau uso, mas sim como se ela fosse algo inadequado para se produzir conhecimento. Mas o que pode ser constatado é que a experimentação, a troca de informações, a comprovação empírica e outras características da ciência moderna são o que possibilita essa enorme gama de conhecimento que dispomos hoje, e relembrando o mais importante de tudo o que foi escrito aqui, essas características não são novas, nos acompanham desde nossos ancestrais de milhares de anos no passado, não surgiram na Grécia antiga e muito, muito menos na Europa do século XVIII, apesar de é claro terem apresentado, por razões históricas, grande desenvolvimento nessas épocas. Ser conservador e ser contra a ciência me parece bem, ser progressiva e lhe ser contra? Ora, que contrassenso horrível.

Todas as formas de se construir conhecimento são ancestrais, mas o conjunto das formas reunidas na ciência moderna e desenvolvidas nela está aí para comprovar eficácia, precisando, no entanto de uma consciência para analisar seus rumos, apontar caminhos e criticar erros. Esse é o papel da boa filosofia, analisar honestamente a ciência e não agir como o misticismo e a religião, intencionados em fazer os progressos do conhecimento regredirem ou serem vistos como ilusórios, mesmo que essa filosofia ganhe apelidos progressistas como pós modernismo...

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