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quinta-feira, 19 de junho de 2014

A negação da possibilidade do conhecimento


Toda vez que um selvagem segue o rastro da caça, ele emprega uma exatidão de observação e uma acuidade de raciocínio indutivo e dedutivo que, aplicadas a outras questões, lhe assegurariam uma boa reputação como homem de ciência. O trabalho intelectual de um bom caçador ou guerreiro supera consideravelmente o de um inglês comum.
Thomas H. Huxley, citado por Carl Sagan em O mundo assombrado pelos demônios, cap . 18


Para os europeus, os “selvagens” (africanos, asiáticos, indígenas americanos, aborígenes australianos etc) temiam os fenômenos da natureza como fúria divina, castigo dos céus, sinal de descontentamento de seres superiores e por aí vai. É comum que obras de ficção antigas, como livros e filmes de aventuras mostrem o branco europeu tapeando o negro africano, dizendo ter poder para “esconder o Sol” (sabendo de antemão que haveria um eclipse solar naquela data). Os negros ficam assustados com esse poder e passavam a adorá-lo como um deus ou um grande feiticeiro e a temer sua magia poderosa... 

Tolice, os povos primitivos conheciam os céus muito bem e não se deixariam enganar dessa forma tão ingênua. Viam os fenômenos naturais de forma mágica, “animista”, mas muitos de nós cidadãos modernos continuamos a vê-los assim tb, apesar do imenso acumulo de conhecimento que dispomos hoje. Sabiam eles por experiência empírica que eclipses eram de todo modo passageiro e que acontecerem inúmeras vezes sem a presença do “grande feiticeiro branco”... Pois bem, temos aí um modo preconceituoso de pensar: “Povos primitivos são inferiores, ignorantes, incultos, não dispõem de capacidades, devem ser aculturados, podem ser usados como bestas de carga, não devem ter os mesmos direitos que o homem civilizado etc... Absurdo é claro, e isso foi desmentido parcialmente com a diminuição da discriminação racista. Mas isso não é tudo.

Os povos antigos não eram tolos temerosos a tudo e a todos, mas não tinham o acumulo de conhecimento que temos sobre a natureza. Tanto um pajé brasileiro de 500 anos atrás quando um filósofo grego de 2500 AC. não dispunham do conhecimento que temos atualmente. Por isso ambos tinham idéias sobre a realidade que não condizem com o que sabemos hoje. Pois bem, mas a ideologia tem varias faces e se encontra em toda tendência política.

Se os conservadores tinham o mito da superioridade européia, uma parcela dos progressistas modernos tem “o mito da negação do progresso do conhecimento”. Para eles as noções de um eclipse ser ou um fenômeno natural ou uma manifestação sobrenatural “são equivalentes”, pois tudo é cultural, tudo é o que pensamos ser, e tudo se baseia no que nós acreditamos... Imbuídos que estão de ideologia, vêem tudo como sendo ideológico. Tudo pode ser entendido da forma com que a cultura determina e não da forma que se da na natureza, pois afinal de contas não existe algo fora do que pensamos ser real, ou se existe, não podemos conhecê-lo... E aí temos o irracionalismo de volta... E os ataques à ciência. 

Crer que a Lua projeta sua sombra sobre a Terra nada tem de ideológico, ou subjetivo. E nada tem também com a alegada superioridade européia ou outra qualquer. A descoberta de fatos reais sobre o mundo não são obra da sociedade européia moderna e sim da humanidade toda. A ciência não é ocidental, oriental, árabe... É humana. Por mais que vc seja conservador ou progressista vai cair se pular do alto da montanha, a gravidade não discrimina entre ideologias, etnias ou gêneros. Mas como nasceu em uma época em que já há domínio do conhecimento sobre a gravidade, pode sobrevoá-la com um avião... 

Entender a realidade da gravidade e criar formas de se lidar com ela foi o que possibilitou a construção desde o avião aos veículos espaciais, e tb a manutenção dos satélites em orbita, sem os quais o mundo seria completamente diferente... Não há sentido em afirmar que nossos conhecimentos objetivos, construídos a duras penas desde o surgimento de nossa espécie seja uma invenção cultural da sociedade ocidental. O 5º episódio da nova versão de Cosmos, apresentado Neil deGrasse Tyson desmonta esse modo equivocado de pensar, que vê uma evolução linear da ciência, se originando na Grécia e se desenvolvendo na Europa no século XVIII. Mito esse propagado até em livros didáticos de filosofia, logo a filosofia, que se pretende tão crítica, reafirma tal coisa. Também na magnífica obra O Mundo assombrado pelos demônios, Sagan se ocupa desse tema tão oportuno no capítulo 18. 

Os conservadores que elogiam a ciência como conquistam exclusiva da cultura ocidental e os progressistas que a criticam exatamente por isso estão ambos enganados ao não entenderem o que ela seja. Já me perguntaram se a ciência era a minha deusa e já me “acusaram” de por a ciência no altar que antes era da religião e ser “positivista”. Alegações de pessoas progressistas e conservadoras quem tem ainda que deixar de se ocupar apenas das subjetividades das “ciências humanas” e se pautar pela objetividade. A ciência é uma criação humana que se reconhece como tal. Os deuses e as religiões se fantasiam de seres e fenômenos “sobre-humanos”. 



Os mitos e o apego à realidade fazem parte do modo humano de ser desde o início de sua existência. E essa convivência é contraditória, gera desenvolvimento e entraves a nossa forma de entender o mundo. Em largos passos podemos ver que quando o trabalho foi valorizado ao longo da história, tb o conhecimento objetivo se desenvolveu, pois este precisa ser realizado e não apenas idealizado, para existir. Quando, ao contrario, o ócio ou apenas o chamado trabalho intelectual foram valorizados, as formas de se construir conhecimento se atrofiaram a ponto de em alguns momentos se tornarem inexpressivos. Isso juntamente com a maior ou menor liberdade de pensamento foi primordial para o desenvolvimento da ciência. 

É o caso de inúmeras sociedades da antiguidade, como a China. Antes da unificação do império nessa sociedade havia vários elementos do que modernamente constitui a ciência, mas com o fim da liberdade de pensamento muito foi destruído, até mesmo com a morte de pesquisadores e queima de suas obras. Outro exemplo vem da Grécia antiga. Anteriormente terra de navegadores que conheceram inúmeros povos e realidades sociais diferentes pelos portos pelos quais passavam e dispondo de relativa liberdade política o povo grego obteve inicialmente grande evolução em seu entendimento de fenômenos físicos e suas leis naturais. Mas com o enriquecimento da elite grega e o aumento do trabalho escravo essa realidade se modificou. Todo trabalho passou a ser visto como obra de escravos, algo indigno de ser executado por homens livres, que deveria apenas se ocupar de contemplação e pensar sobre... Isso se reflete nas obras de Platão, que se volta contra a realidade material e cria um mundo das ideias, onde elas existem de forma independente do nosso mundo material. 

Ótimo exemplo de como apenas contemplar e traçar ideais ao invés de analisar de forma concreta a realidade e fazer experimentação nos faz meter os pés pelas mãos. Mas por vários séculos, e em parte até hoje, essa noção elitista de que é o pensamento e a consciência que criam a realidade está disseminada e faz parte da crença de inúmeros pensadores, os filósofos que se aliam a algum tipo de idealismo. 

Na idade média europeia essa noção se tornou mesmo hegemônica. A elite parasitária, os sacerdotes e senhores feudais, vivia totalmente à custa do trabalho de servos, e mostraram como a pura contemplação e a vida baseada em fantasias (noções sem base material) podem travar o conhecimento e mesmo fazê-lo regredir... Nessa mesma época, em regiões onde não havia tanto desprezo pelo trabalho o desenvolvimento do conhecimento objetivo continuou a ocorrer, tal como entre os árabes, no oriente médio. Se a ciência teve um grande desenvolvimento na Europa moderna foi pq a elite feudal foi deposta por outras classes que valorizavam o trabalho, a atividade concreta, a atuação sobre a realidade material e a sua transformação. E esse processo continua. 

E é o que fundamenta a construção do conhecimento atual, a ponto de podermos afirmar que é a "junção da experiência, do trabalho, da atuação sobre o real com a construção de idéias que expliquem os processos reais e não imaginários". E é a isso que chamamos de ciência. Poderia ter outro nome. Ou ainda podem chamar de ciência processos que não sejam exatamente isso, ou que sejam algo totalmente diferente. Para muitos, de visão limitada e pouco conhecimento, ciência é algo misterioso feito por um sujeito de jaleco branco em uma sala iluminada cheia de frascos borbulhando e luzes piscando em um painel. Para outros, de imaginação fértil, ciência é tudo o que ele acredita, mesmo que seja “o método para acabar com os males humanos trazido pelo unicórnio rosa invisível por meio da meditação quântica”...

Quando o pajé indígena brasileiro ou o xamã de outros povos antigos fazia seus rituais de cura, com danças, cânticos, máscaras, vestuário próprio e dietas, isso era útil para unir o grupo, manter a tribo forte psicologicamente frente a epidemias, ou a doença de um grande líder por exemplo. Em nada esses rituais funcionavam como contato com o mundo espiritual como eles acreditavam, (e muita gente acredita ainda hoje), posto que não exista mundo espiritual algum. Não eram os espíritos dos antepassados mortos ou os deuses que curavam. Além dos tais rituais, havia o conhecimento sobre o uso de minerais, ervas, fungos, partes de vegetais e animais, e as diversas substâncias que poderiam ser extraídas deles para o uso medicinal. E esse conhecimento não mágico era o que de fato funcionava, e ainda o é. E é isso que temos enormemente desenvolvido hoje, é isso a ciência. E é claro que não estou escrevendo apenas sobre medicina, ou astronomia, ou algum conhecimento em particular. Escrevo sobre o conhecimento, ou melhor, sobre como construí-lo, e não é com a criação de idéias sem base material expressas por palavreado rebuscado. É com comprovação, com experimentação, evidências, confrontação de noções e ampla divulgação comparativa de resultados.   


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