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sexta-feira, 8 de março de 2013

Padrões, intenções e enganos

"A coisa debaixo da minha cama à espera de agarrar meu tornozelo não é real. Eu sei disso, e eu também sei que se eu tomar o cuidado de manter meu pé debaixo das cobertas, ela nunca será capaz de agarrar meu tornozelo”.
Stephen King no prefacio de Sombras da Noite, 1977

Nossa consciência racional sabe que não há, mas a parte mais profunda e primitiva do cérebro teme mesmo o que não existe.

Quando vemos residências, independentemente da cultura que as construiu as reconhecemos como tal. Não importam se são conjuntos habitacionais populares ou condomínios fechados, ocas indígenas ou cavernas habitadas, vilas do Oriente médio, iglus, palafitas, barracos, trapiches, mansões... O padrão da habitação humana é, para nós, inconfundível.
Em uma famosa foto tirada de Marte nos anos 70 por uma sonda da NASA um jogo de sombras é reconhecido pela maioria das pessoas como sendo um rosto humano. Pudera, vemos rostos até em manchas nos vidros de janelas... 

Em qualquer cultura os mesmos gestos humanos nos dizem o mesmo. Um sorriso sincero é sinal de simpatia e aprovação em qualquer lugar. Já um sorriso de deboche ou de malicia é percebido como tal. Não sabemos explicar bem a diferença que sentimos... Mas sentimos a diferença. 

O fato é que a parte primitiva e não racional do cérebro tem uma eficiente capacidade de reconhecer padrões de atividade humana e expressões faciais. Não é necessário “pensar sobre eles”. Tal como em outros animais, padrões e intenções são reconhecidos por nós de forma inata. 
O papel da estética na atração sexual, a diferenciação de comportamento masculino e feminino, a atenção provocada pela cor vermelha que indica alimento e perigo (frutos maduros, carne e sangue), a repulsa por sabores e odores que indiquem deterioração e contaminação demonstram que somos especialistas em detectar padrões usados para conseguir parceiros sexuais, alimento e nos livrar de predadores e outros perigos. É muito difícil enganar alguém sobre o sexo de uma pessoa, por melhor que seja o disfarce, mesmo com cirurgias para mudar a forma do corpo... O relincho ou um balido de um herbívoro não é temido por nós como o rugido ou o rosnado de um carnívoro.
Também percebemos intenções com inegável habilidade. E as outras espécies animais também o fazem. É tão automático que em geral nunca refletimos sobre isso, mas observe seu cachorro. Eles são fruto de seleção artificial. Em milhares de anos os criadores de cães cruzaram indivíduos que tinham as características que desejavam e mesmo características novas originadas por mutações mais recentes. Por fim temos um animal extremamente “humanizado” pois é resultado de ação humana de longo prazo. 

Entre outras habilidades a seleção artificial nos totós ampliou sua habilidade de reconhecer padrões e intenções. Ele percebe se você está alegre, animado, triste, de mal humor, se é bem vindo ou não ao ambiente. Antecipa suas ações. Se você pega as chaves do carro ele já corre para o portão da frente. Fica eufórico quando você pega a guia e a coleira pois sabe que vem passeio aí. Ou deveria vir... Quando nota indícios de que vai tomar banho, se esconde. Percebe pelo seu tom de voz e pela sua gestualização se está levando uma bronca ou sendo convidado para brincar...

Todas essas ações são reais em cachorros, mas se você imagina que seu iguana de estimação tem habilidades compatíveis com essa, você está enganado. O cérebro do mamífero é muito mais desenvolvido do que o do réptil. É uma evidência de que são as estruturas cerebrais mais desenvolvidas que originam a consciência, e não algum fenômeno sobrenatural como a alma ou um espírito. 

O engano recorrente em que uma atividade natural realizada pelo cérebro é vista como algo sobrenatural, demonstra que em alguns casos há também erros no reconhecimento da realidade. Enganamos-nos sobre o que vemos. Para muitas pessoas, se algo dá errado em suas vidas é “obra da inveja” de alguém, uma mandinga, feitiço, macumba... Ou o inimigo está agindo. Se tudo está bem é obra de Jesus, dos anjos da guarda, dos santos e outros seres benéficos. E sem nada que ateste que tais suposições sejam reais. 

Simplesmente “inventamos a realidade” nessas e inúmeras outras situações. Somos supersticiosos. Quando não há padrão algum, simplesmente os criamos. Se um acontecimento que nos beneficie ocorre por puro acaso, vamos negar esse acaso e atribuir o acontecimento a um objeto da sorte, a benção divina, ou uma “conspiração do universo” a nosso favor. “Não existe mera coincidência”, é no que acreditamos. 

 Podemos recriar os padrões que distinguimos. Podemos recriar as intenções que observamos. Quando é feita de forma consciente e não como autoengano isso se chama arte. As inúmeras formas de expressão artística que se manifestam na pintura, escultura, música, dança, arquitetura, teatro, cinema e tantas outras, são diferentes formas de recriação da realidade de modo a que lhe dê novos significados para nos encantar, chocar, divertir, emocionar e nos fazer refletir... Reinventar padrões é algo muito saudável para a mente, é um exercício para nosso cérebro. 

Mas nem todos nós reinventamos significados de forma consciente. Padrões e intenções imaginários podem ser percebidos como reais e não como uma recriação da realidade. Até certo ponto todos nós confundimos a realidade com a imaginação, mesmo quando adultos. Mas acima de um limite impreciso temos um problema de saúde mental, a psicose ou “loucura”. Recriar a realidade de forma consciente é arte, de forma irracional é insanidade. Mas novamente temos um limite impreciso. A relação entre esses dois fenômenos é tema do próximo texto.

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